Contribuição para inclusão da Gastronomia no Plano Municipal de Cultura de
São Sebastião, litoral norte de São Paulo
Toda ação ligada à comida, até a mais simples e corriqueira, traz uma história e uma cultura complexas. Associar o modo de vida das comunidades aos seus saberes culinários é entender a comida como parte indissociável da cultura desses locais.
Decididamente, a comida é expressão da cultura, não só quando produzida, mas também quando preparada e consumida. O próprio gosto é um produto cultural, resultado de uma realidade coletiva a partir das fusões e mestiçagens relacionadas aos territórios e à autenticidade local. Segundo o pesquisador e especialista em história da alimentação, o italiano Massimo Montanari, [...] toda cultura, toda tradição, toda identidade é um produto da história, dinâmico e instável, gerado por complexos fenômenos de troca, de cruzamento. Os modelos e as práticas alimentares são o ponto de encontro entre culturas diversas, fruto da circulação de homens, mercadorias, técnicas, gostos de um lado para o outro do mundo. MONTANARI Massimo pag. 189.Comida como Cultura.
A gastronomia local revela características e costumes de um determinado povo, como também suas referências históricas. Numa região litorânea, com raízes indígenas, influências africanas e tradição caiçara, colocar luz sobre esse conceito permite valorizar a terra, a comunidade e seus saberes tradicionais.
Os caiçaras surgiram a partir da união das matrizes indígena, europeia e africana. O termo representa o pescador da região Centro-Sul do Brasil, em particular aquele que habita o litoral paulista. Ser caiçara é viver a origem, as tradições e costumes de seu povo e de seu território. O entendimento em elaborar o alimento é intrínseco a esse processo histórico e civilizatório. Os índios habitavam a terra, com uma cultura própria e rica, com suas lendas e manifestações ritualísticas. O alimento do mar, o produto da terra, da caça, das matas e suas raízes estabeleceram um modo singular da sua alimentação. Quem nasceu nessa terra manteve os hábitos do passado e o modelo para preparar a comida. Técnicas de conservação dos peixes no sal são mantidas até hoje na mesa do caiçara.
O rústico na comida caiçara, no seu jeito simples, se mantém até hoje no jeito de vida da comunidade e no cardápio de grandes chefs da região. Entenda- se rústico como algo rico, genuíno, de origem...
A base da culinária original local possui especialidades como o lambe-lambe caiçara feito com mariscos, o bolinho de taioba, a casquinha de siri e o peixe azul marinho, prato composto por peixe, pirão e banana verde, e que tem esse nome devido a uma reação química em cozimento de panela de ferro. São verdadeiros patrimônios resultantes da prática e da oralidade de gerações em gerações. O peixe azul marinho, segundo o Chef caiçara Eudes Assis, em entrevista para um portal das redes sociais, não tem uma receita comum, pois, para saber o ponto exato do cozimento da banana e o momento certo de colocar a fruta na água, o fundamental é a experiência nativa.
Mandioca, cana, taioba, peixe, mariscos, banana são ingredientes da cozinha caiçara que lhe garantem identidade, ou melhor, identidades construídas a partir da história da formação da região. Os costumes alimentares estabelecem uma forte ligação das pessoas com o meio em que vivem, social, econômica e, principalmente, cultural.
Conhecimentos de um povo que se manteve resguardado no tempo e que hoje, graças ao entendimento de muitos, está nos cardápios de chefs caiçaras de São Sebastião, como Eudes Assis e Cristiane Lara.
São Sebastião tem as vocações cultural, turística e gastronômica. Entender essa trilogia e desenvolver projetos relacionados à ela promovem impactos positivos para a comunidade. Hoje, os Festivais Gastronômico e Caiçara, promovidos pelo município, mostram o potencial cultural da gastronomia caiçara e local, além de entender a comida como algo a mais dentro da narrativa cultural da região.
A cozinha caiçara faz parte do grande mapa da comida brasileira e a diversidade de produtos, saberes, ingredientes, temperos, texturas, cores e formas coloca a cozinha brasileira dentre as mais ricas do mundo. Por esse motivo, desenvolver o turismo e a gastronomia como um espaço democrático, com reconhecimento cultural da cozinha caiçara e brasileira, permitirá ao município a valorização da comida do mar e das cozinhas de outras regiões do país que se instalam aqui, como caminho natural das regiões de intenso turismo.
Dentro dessa perspectiva de comida como cultura e de valorização da cozinha caiçara, desenvolvemos no Brasileira Gourmet um cardápio que contempla ingredientes da cozinha brasileira e promove a manutenção e sustentabilidade dos fornecedores locais.
Uma política ampla para esse setor, no âmbito do Plano Municipal de Cultura, levará à compreensão do consumidor sobre as distintas cozinhas brasileiras e a importância da conservação dessas matrizes, em especial aqui a caiçara. Por meio do conhecimento, da ampliação da visibilidade e da qualificação dos estabelecimentos de comida em São Sebastião, moradores e turistas poderão degustar a diversidade como algo brasileiro.
Assumir a Gastronomia local como algo cultural que fortalece e resignifica a realidade a partir das origens e raízes é valorizar a comunidade e a história do seu povo. É reconhecer a natureza de seu próprio povo. Nesse sentido, propomos a inclusão da Gastronomia no Plano Municipal de Cultura de São Sebastião, com objetivo de fomentar as áreas da cultura e do turismo gastronômico, tendo em vista a importante interface desses segmentos com o mercado de trabalho, a educação, a saúde e o meio ambiente.
Esperamos que o tema seja debatido hoje, 30 de novembro/2019, na Pré- Conferência Municipal de Cultura de São Sebastião, que acontece no tradicional bairro São Francisco. O encontro é promovido pela Prefeitura, Fundação Educacional e Cultural Deodato Sant’Anna (Fundass), em parceria com o Conselho Municipal de Políticas Culturais de São Sebastião (CMPCSS). Acreditamos que incluir a Gastronomia nas diretrizes da cultura para os próximos 10 anos permitirá:
- valorizar novas formas de mobilização e fortalecer o movimento para a construção de um mundo sustentável e equilibrado por meio do alimento como cultura;
- fortalecer o turismo local de base cultural e histórica brasileira a partir da produção de conhecimento sobre alimentação;
- fomentar a culinária local caiçara, suas influências e interferências históricas e contemporâneas;
- Inventariar e registrar os saberes culinários;
- provocar impacto no mercado de trabalho local proporcionando a formação de jovens na área de alimentos e bebidas;
- pensar e proporcionar experiências gastronômicas onde a cozinha encontra o modo de viver e a própria história da comunidade;
- desenvolver o turismo e a gastronomia como um espaço democrático, com reconhecimento cultural da cozinha caiçara e brasileira;
- levar o consumidor a compreender as distintas cozinhas brasileiras, ampliando a visibilidade e a valorização da comida do mare o conhecimento e qualificação dos estabelecimentos de comida e cozinhas de outras regiões;
- incentivar o crescimento de uma rede de produtores para o desenvolvimento da economia local;
- desenvolver técnicas e políticas que priorizem o combate ao desperdício dos alimentos e a melhor forma de reutilizá-los visando uma maior equidade;
- priorizar e desenvolver condutas relacionadas à separação e à reciclagem de resíduos do setor.
Permitirá, portanto, um mapeamento do setor com identificação quanti e qualitativa das áreas envolvidas e do potencial estratégico desse segmento na educação, na cultura, no turismo e, consequentemente, na geração de empregos na região.
*Adriana Saldanha é jornalista e Chef de Cozinha. Pós graduanda em Negócios em Gastronomia e em Gastronomia Autoral, tem graduações: Universidade Anhembi- Morumbi/Gastronomia; FURG-RS-Letras e PUC-RS- Comunicação Social. Está à frente do espaço de gastronomia BRASILEIRA GOURMET e do BISTRÔ DA CASA BRASILEIRA, localizados no centro histórico de São Sebastião-SP. Trabalha o conceito de Comida Como Cultura. Tem a cozinha caiçara como origem e traz influências das cozinhas portuguesa e afro-brasileira. Realizou imersão em culinária africana na África do Sul e mantém intercambio e vivências em restaurantes e casas de cultura da Bahia, em especial a Casa de Tereza. Dedica-se à pesquisa e ao registro audiovisual de ingredientes, temperos, produtos e modos de cozinhar em comunidades do litoral, do sertão, territórios quilombolas e em terras indígenas da região amazônica, com mapeamento de mais de 100 cozinhas pelo interior do Brasil nos últimos 12 anos. Idealizou e implantou a CASA BRASILEIRA, centro de cultura, arte e gastronomia do Instituto Mpumalanga, em São Sebastião-SP.